domingo, 25 de agosto de 2013

sábado, 13 de abril de 2013

Impunidade ou "legalidade"? PEC 37 e o poder de investigação direta pelo MP



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Toda essa polêmica que temos acompanhado de um modo mais do que insistente ultimamente, em torno da Proposta de Emenda Constitucional n.º 37 (apelidada pelo MP de "PEC da Impunidade" e pelas associações de delegados de "PEC da Legalidade"), com direito a apelo midiático dos mais diversos matizes (entrevistas, debates, moções públicas, passeatas e atos públicos etc.), não é nada nova. 

Prova disso é o trecho, abaixo transcrito, que é parte do meu trabalho de conclusão de curso na Faculdade de Direito da UNESP, defendido no ano de 2002, elaborado sob a ilustre orientação do Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges

Evidente que, considerando o debate atual, assim como os principais argumentos que hoje são utilizados para defesa de um e outro ponto de vista (como por exemplo, de um lado, a tese dos poderes implícitos e, de outro, a questão relativa às carências da carreira policial), esse artigo, que agora transcrevo nesse blog quase que moribundo, também não vem oferecer nada de novo. 

Posso dizer que, no entanto, ao me posicionar a respeito, interessante constatar que, nesses 10 anos, continuo a pensar do mesmo jeito e ainda achar um absurdo (com todo respeito e consideração que teses contrárias merecem), uma proposta de emenda constitucional como essa, por colocar em cheque conquistas democráticas que ainda mal sedimentamos...

E é por tal razão que resolvi, aqui, transcrevê-la e contribuir, de modo falho certamente, porém o mais honesto e imparcial possível (sou um mero professor universitário e, por isso, não filiado corporativamente nem ao Ministério Público e nem à carreira policial). 

Ressalto, por fim, que o que mais gostaria de ver em nosso país é uma atuação conjunta, forte e equilibrada dos órgãos encarregados da persecução penal. E, ao meu sentir, não será essa PEC que fará isso. Muito pelo contrário.  Não será essa PEC que dará, a delegados e demais policiais, melhores e condizentes salários, estrutura de ponta, tecnologia para elucidação dos mais graves e complexos crimes perpetrados pelas (cada vez mais organizadas) facções criminosas e, enfim,  não será essa PEC que lhes reservará, em âmbito constitucional, as mesmas garantias do Parquet como inamovibilidade, irredutibilidade de subsídios, autonomia funcional e efetiva independência.

Penso, em síntese, que essa tentativa de retirada dos poderes investigatórios do MP, por meio da ridícula redação que, aparentemente, tornou-se definitiva (três linhas, conforme se vê, que poderão causar um estrago que não será remediado em menos de três décadas) não tem o condão de dar às Polícias (Federal e Civil) o merecido reconhecimento que, da mesma forma, considero IMPRETERÍVEL para a efetiva realização de seu também IMPRESCINDÍVEL mister constitucional.

P.S.: para tornar a leitura mais agradável, considerando que não mexi nesse texto desde que fui aprovado na banca de TCC, fiz apenas alguns reparos gramaticais e acrescentei, como verão, algumas notas de atualização para melhor elucidação ou complementação de alguns pontos. O restante, inclusive os erros evidentes, deixei como estavam...
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3.3.3 Poder de investigação e lavratura do auto de prisão em flagrante.
Muita discussão existe entre doutrinadores e não menos na jurisprudência em torno da possibilidade ou não de que o Ministério Público possa, diretamente, comandar investigações criminais sendo que, parte deste difícil dilema já foi, inclusive, abordado no item anterior[1].
Aqueles que são contrários a esta tese costumam alegar, de maneira um tanto desavisada por sinal, que a polícia civil, quando desempenhando a função de polícia judiciária[2], detém de forma privativa o poder de investigação das ações criminais. Mas, conforme todos sabem, isso não é verdade e, para se assentar esta questão, a interpretação do texto constitucional, no ponto em que estão definidas as atribuições das instituições incumbidas de garantir e promover a segurança pública, tornará bem claro esse entendimento.
Assim, diz o § 4.º, do art. 144 da CRFB que “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. Quisesse a Lei Maior outorgar-lhe “exclusividade” nesta atuação, incluiria este termo na sua descrição, como o fez no inciso IV do § 1.º do mesmo artigo com relação à Polícia Federal. Observe-se: diz o mencionado dispositivo que a polícia federal destina-se a “exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União” (grifo nosso)[3].
Não bastasse o mandamento proveniente de norma constitucional, o parágrafo único do art. 4.º do CPP determina, na mesma esteira, que, nos casos de se determinar a competência para apuração de infrações penai não se excluirão aquelas autoridades administrativas que, por previsão legal, também a detenham[4]. Tourinho Filho, comentando o indigitado dispositivo, afirma que
o parágrafo único do art. 4.º (CPP) deixa entrever que essa competência atribuída à polícia [investigação de infrações penais] não lhe é exclusiva, nada impedindo que autoridades administrativas outras possam, também, dentro de suas respectivas áreas de atividades, proceder as investigações[5].
 Portanto, o poder de investigação, ao contrário do que muitos afirmam, não é de exclusividade das autoridades policiais (civis e federais), sendo possível que outras autoridades administrativas, desde que haja a devida previsão legal, possam exercê-lo, dentro do âmbito de suas atribuições.
Assim, sendo o Ministério Público uma instituição que detém parcela da soberania estatal, estando seus membros[6] imbuídos desta mesma parcela, não há óbice para que possam proceder às investigações penais, sendo essa conclusão mera decorrência do que se encontra previsto no âmbito constitucional e infralegal (conforme já citado, art. 4.º, parágrafo único do CPP, onde se lê “outras autoridades administrativas”), como as leis de organização da própria carreira, conforme se verificará.
Durante muito tempo, mais precisamente enquanto ainda estava em vigor a Lei Complementar n.º 40/81 (hoje revogada pela Lei n.º 8.625/93, atual Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), tais considerações eram ainda mais explícitas. Detinha o Ministério Público o poder de “avocar” inquéritos policiais, o que lhe dava plenos poderes de assumir a investigação policial e a condução do próprio inquérito policial. Segundo dispunham os artigos 15, incisos III e V e 7.º, VII da citada lei complementar, por ocasião de sua vigência, dentre as atribuições dos membros do Ministério Público estava a de assumir a direção de inquéritos policiais quando designados pelo Procurador-Geral, nos locais onde não houvesse delegado de carreira.
Tais dispositivos não foram reproduzidos expressamente pela atual Lei 8.625/93, mas, no entanto, conforme já se constou anteriormente[7], esta permite ao membro do Ministério Público acompanhar o andamento das investigações criminais em sede de inquérito policial (art. 26, IV da mencionada lei). Sua participação, todavia, não ficou reduzida apenas a acompanhar os inquéritos que foram requisitados, uma vez que os incisos V e VII do art. 8.º da Lei Complementar n.º 75/93 (Estatuto do Ministério Público da União) lhe permitem “realizar inspeções e diligências investigatórias” e, ainda, “expedir notificações e intimações necessárias aos procedimentos e inquéritos que instaurar”. No caso, tais dispositivos tem aplicação subsidiária à Lei 8.625/93, segundo determinação expressa por seu art. 80[8].
Vê-se que tanto a Lei Maior (art. 129, I, VI, VII e VIII) como as leis de organização da instituição não deixam qualquer margem de dúvidas para caracterizar a legalidade da atuação do Ministério Público em se tratando de condução de investigação criminal no bojo de suas atribuições ministeriais[9].
Reconhecendo-se a plena possibilidade de realização direta de investigações pelo Ministério Público, tanto no âmbito cível quanto criminal, resta indagar se lhe seria possível, em decorrência deste procedimento, realizar a lavratura do auto de prisão em flagrante. Questão talvez ainda mais tormentosa do que a anterior, está longe de encontrar pacificação entre os estudiosos do tema.
Mirabete, ao discorrer sobre o assunto, afirma que “em regra, a autoridade competente é a autoridade policial, no exercício de suas funções primordiais de polícia judiciária, que não exclui a competência de outra autoridade administrativa”[10] que possa vir a ter designada a mesma função. O mencionado autor cita as mesmas regras decorrentes do parágrafo único do art. 4.º do CPP, exemplificando com o art. 33, b da Lei n.º 4771/65 (Código Florestal[11]), que há a possibilidade de lavratura do auto de flagrante pelos funcionários da repartição florestal. Lembra ainda o poder de polícia das Câmaras dos Deputados e do Senado Federal, conforme determina a súmula 397[12], nos casos de crimes cometidos em sua dependência.
Como se pode perceber, desde que investido do poder de investigação, qualquer autoridade administrativa deterá o poder de presidir o auto de prisão em flagrante, uma vez que este decorre daquele. Um entendimento contrário seria, na verdade, um contrassenso. Seria negar o “menos” àquele que pode o “mais”. Se entendermos ser possível, conforme determina a Constituição Federal juntamente com as Leis Orgânicas Nacionais e Estaduais, ao Ministério Público o poder de conduzir e participar diretamente das investigações criminais, certamente dever-ser-á admitir a sua plena possibilidade de proceder também à prisão em flagrante.
Freyesleben afirma em sua festejada obra sobre o tema que sempre se negou o direito de o Promotor presidir auto de prisão em flagrante por puro e simples preconceito[13]. E deve se dar razão ao ilustre promotor mineiro, sobretudo quando lembra que a maioria dos processualistas entendem, sem qualquer questionamento, ser possível que “funcionários da repartição florestal” tenham competência “para a lavratura do auto de flagrante, sem exigir qualquer outra qualidade do agente”[14]. Indaga-se, juntamente com o citado autor, como então negar tal poder ao Promotor (ou Procurador da República), seja quanto ao auto de prisão em flagrante, seja quanto ao próprio ato de investigar, sobretudo quando está constitucionalmente amparado[15]?



[1] Nota de atualização 1: na versão completa do trabalho, o referido item, anterior a este, aborda as denominadas investigações de natureza administrativa que possuem previsão legal no art. 129, inciso VI da CRFB e que, de certa forma, prestam-se a indicar e justificar, a partir de uma interpretação sistemática, a natural vocação do Ministério Público para implementar investigações também de natureza criminal.
[2] Não faz muito tempo, duas decisões foram proferidas pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (HC n.º 96.02.35446-1, 2ª T., Rel. Des. Fed. Silvério Cabral, v.m., julg. em 11.12.96; HC n.º 97.02.09315-5, 1ª T., Rel. Des. Fed. Nei Fonseca, v.u., julg. em 19.08.97, DJU de 09.10.97), encampando decisão isolada do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (HC n.º 615/96, 1ª CCrim., Rel. Juiz convocado Silvio Teixeira, DOERJ de 26.08.96), acolhendo a tese de que o Ministério Público não pode conduzir investigação de natureza criminal, sob o fundamento de que tal atribuição é exclusiva da Polícia Judiciária, somente sendo lícito ao órgão ministerial a condução de inquéritos civis.
[3] Nota de atualização 2: nesse contexto é que, nos dias atuais, arvoram-se a grande maioria dos defensores da suposta “legalidade” da PEC n.º 37. Para os defensores da tese de que ao Ministério Público não foi dada a atribuição investigativa, esse é o dispositivo constitucional apontado como demonstração inequívoca de que a investigação criminal é exclusiva das autoridades policiais. No entanto, parece-nos bastante claro que, o que tal dispositivo quis fazer foi apenas esclarecer que, no âmbito da União, a tarefa de investigar os crimes atinentes aos bens de seu interesse tocará à Polícia Federal e tão somente a ela, afastando-se outros órgãos policiais (como a Policia Civil Estadual, PM etc.), mas não todo e qualquer outro órgão.
[4] De forma expressa, diz o citado artigo que: A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria. (Redação dada pela Lei nº 9.043, de 9.5.1995). Parágrafo único.  A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.
[5] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Interpretado. São Paulo: Saraiva, 1996, V. I, p. 16.
[6] Uma vez que enquadram-se na categoria de agentes políticos, estão dentre aquelas “autoridades públicas supremas do Governo e da Administração”, nos dizeres de Hely Lopes Meirelles. Cf. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 25.º ed. [atualizada por Eurico de Andrade Azevedo et alli]. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 72-73.
[7] Nota de atualização 3: referência a tópico anterior da dissertação relativo às atribuições ministeriais na condução de procedimentos de sua alçada, como inquéritos civis e administrativos.
[8] Diz, o citado artigo: “aplicam-se aos Ministérios Públicos dos Estados, subsidiariamente, as normas da Lei Orgânica do Ministério Público da União”.
[9] Cf. neste sentido, as seguintes ementas: 1) “Regular participação do órgão do Ministério Público em fase investigatória e falta de oportuna argüição da suposta suspeição do magistrado. Pedido indeferido" (STF, HC n.º 75.769-3-MG, 1ª T., Rel. Min. Octavio Gallotti, v.u., julg. em 30.09.97, DJU de 28.11.97); 2) “PROCESSUAL PENAL. DENÚNCIA. IMPEDIMENTO. MINISTÉRIO PÚBLICO. I - A atuação do Promotor na fase investigatória - pré-processual - não o incompatibiliza para o exercício da correspondente ação penal. II - Não causa nulidade o fato do Promotor, para formação da opinio delicti, colher preliminarmente as provas necessárias para ação penal. III - Recurso improvido (STJ, RHC n.º 3.586-2-PA, 6ª T., Rel. Min. Pedro Acioli, v.u., julg. em 09.05.94, DJU de 30.05.94); 3) “HABEAS CORPUS. DENÚNCIA OFERECIDA COM BASE EM INVESTIGAÇÕES PROCEDIDAS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. (...) 1. O inquérito policial é, em regra, atribuição da autoridade policial. 2. O parquet pode investigar fatos, poder que se inclui no mais amplo de fiscalizar a correta execução da lei. 3. (...) 4. Tal poder do órgão ministerial mais avulta, quando os envolvidos na infração penal são autoridades policiais, submetidos ao controle externo do Ministério Público (TRF/4ª Reg., HC n.º 97.04.26750-9-PR, Rel. Juiz Fábio Bittencourt da Rosa, 1ª T., v.u., julg. em 24.06.97, DJU de 16.07.97) [grifos nossos].
[10] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 10. ed. rev. e at. São Paulo: Atlas, 2000, p. 378.
[11] Nota de atualização 4: hoje encontra-se revogado pela Lei nº 12651/12 que não reproduziu em seu texto o mencionado dispositivo. É do conhecimento geral, todavia, a competência dada aos órgãos ambientais para a realização de procedimentos administrativos, de natureza investigatória e ostensiva para a prevenção e repressão a infrações de natureza ambiental, nos termos do que dispõe, dentre outras, a Lei n.º 6938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente).
[12] Súmula 397 do STF: O poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito (grifo nosso).
[13] FREYESLEBEN, Márcio Luís Chila. O Ministério Público e a Polícia Judiciária: controle externo da atividade policial. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 120.
[14] Ibidem. Loc. cit.
[15] Nota final de atualização: O STF, nas oportunidades em que analisou a questão, considerou a aplicação da chamada teoria dos poderes implícitos (inherent or implied powers theory do direito norte-americano). Ao julgar o MS 26.547-DF, o pleno do Supremo fixou o entendimento segundo o qual "a formulação que se fez em torno dos poderes implícitos, cuja doutrina — construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América no célebre caso McCULLOCH v. MARYLAND (1819) — enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à  integral realização dos fins que lhe foram atribuídos". Posteriormente, no ano de 2009, quando levado a julgar exatamente a questão que gira em torno do tema aqui analisado, a Segunda Turma do STF, mais uma vez, valeu-se do argumento relativo à teoria dos poderes implícitos. Ao julgar o HC 91.661/PE, o Min. Celso de Mello, em voto lapidar, considerou ser este um “princípio basilar da hermenêutica constitucional segundo o qual, quando a Constituição Federal concede os fins, dá os meios.” E foi assim que a ex-minitra Ellen Gracie, então relatora do mencionado acórdão, asseverou que "não há óbice a que o Ministério Público requisite esclarecimentos ou diligencie diretamente à obtenção da prova de modo a formar seu convencimento a respeito de determinado fato, aperfeiçoando a persecução penal. (...) Essa conclusão não significa retirar da polícia judiciária as atribuições previstas constitucionalmente". Ressalte-se, finalmente, que, em conclusão, restou reconhecido no âmbito da mais alta Corte, por unanimidade, existir o poder-dever, previsto na Constituição da República, do Ministério Público em proceder, ele próprio, investigações criminais ou de qualquer outra natureza, sempre que considerar pertinente ao cumprimento de suas atribuições constitucionais.